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A ameaça de corte no gasto obrigatório com saúde

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São Paulo – No texto que é considerado por muitos seu plano para o país, o Ponte Para o Futuro, a legenda afirma que, para que a economia volte a crescer, é necessário reformar nossa “sistemática orçamentária” — ou seja, reorganizar os gastos do governo brasileiro.

E sugere medidas. “Em primeiro lugar, acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como nos casos dos gastos com saúde e com educação”, diz o documento de 18 páginas sobre a obrigatoriedade do investimento nessas áreas de um percentual fixo da arrecadação com impostos.

O próprio recém-nomeado ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP-PR), expôs, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, a preocupação de que o país não venha a ter como sustentar o acesso universal a saúde. “Vamos ter que repactuar, como aconteceu na Grécia, onde cortaram as aposentadorias.”

Atualmente, a União é obrigada a aplicar na saúde ao menos o mesmo valor do ano anterior mais o percentual de variação do PIB (Produto Interno Bruto). Estados e municípios precisam investir 12% e 15%, respectivamente. Na educação, o governo federal deve gastar 18% do arrecadado e as outras esferas, 25%.

Em seus tempos de vice, o presidente interino defendeu publicamente o fim dessa regra. “Essa fórmula (acabar com a exigência) reforça a Federação, que se ancora na ideia de autonomias locais”, afirmou na convenção do PMDB, em novembro.

Mas, enquanto ainda não é possível saber se o governo interino levará a ideia adiante e se conseguirá o apoio do Congresso para tal, há um projeto que atende a parte desse ideal de orçamento. E com grandes chances de aprovação.

Trata-se da proposta de emenda à Constituição de número 143/2015, já aprovada em primeira votação no Senado. A PEC pretende estender aos Estados e municípios um direito que o governo federal já exerce com a DRU (Desvinculação de Receitas da União): o que permite que as gestões usem livremente 25% dos valores que teriam de aplicar compulsoriamente em saúde — a educação acabou poupada.

O tema desperta controvérsias. De um lado, há quem condene a retirada, até mesmo de fatias, dessa obrigatoriedade – e vê sob ameaça a própria existência do Sistema Único de Saúde (SUS); de outro, alguns veem na regra atual um “engessamento” dos gastos que, além de colaborar com a piora nas contas públicas, não garante uma boa aplicação do dinheiro.

Alívio?

Embora não atenda diretamente ao governo federal, a eventual aprovação da PEC, de autoria do senador Dalirio Beber (PSDB-SC) e relatada pelo hoje ministro do Planejamento de Temer, Romero Jucá (PMDB-RR), chegaria em um momento favorável para o governo.

Como muitas administrações locais sofrem com a crise econômica, um alívio como esse seria bem-vindo – vale lembrar aqui que o PMDB é o partido líder em número de Estados e municípios no país.

Em seu primeiro discurso, Temer disse querer corrigir o que vê como distorções que sobrecarregam cidades e governos estaduais e defendeu uma reforma do “pacto federativo” (de modo geral, dos direitos e responsabilidades de cada ente da federação).

Gustavo Fernandes, professor do Departamento de Gestão Pública da EAESP-FGV, diz que países mais desenvolvidos não costumam vincular o orçamento a gastos fixos, mas não vê a retirada da obrigatoriedade, seja em partes ou definitivamente, como uma boa saída para o Brasil.

“Estamos flexibilizando o processo, o que faz sentido, mas não estamos garantindo que a educação seja privilegiada”, afirma ele, que defende a vinculação de verbas a resultados.

O professor cita como exemplo o programa educacional No Child Left Behind(Nenhuma criança deixada para trás, em tradução livre), do governo dos Estados Unidos.

Como no país a educação é financiada pelo imposto de propriedade, que é local, regiões mais pobres costumam ter menos recursos para investir. Para harmonizar esse descompasso, o programa monitora os resultados e acompanha os distritos que apresentam dificuldades. O que significa, se necessário, investir mais dinheiro do governo federal naquela região.

A falta desse tipo de fiscalização, avalia o especialista da FGV, potencializa no Brasil os riscos de uma redução dos recursos investidos em caso de desvinculação, principalmente nos municípios.

“O prefeito é um profissional. Tem uma carreira política, quer ascender. Ele tende a adotar políticas de curto prazo, que sejam facilmente identificadas pelo eleitor. Com isso, essas políticas difusas, de longo prazo, mas que mudam as gerações – o caso típico de educação –, tendem a ser menos importantes para o prefeito”, afirma.

A proposta peemedebista de acabar de vez com o percentual de gasto obrigatório aposta na adoção de um orçamento impositivo – ou seja, que obrigue o Executivo a investir tudo que está no plano aprovado no Legislativo –, o que, na sua visão, colocaria os parlamentares como “guardiões” da manutenção do investimento nessas áreas.

Hoje, o orçamento é facultativo, ou seja, o governo não é penalizado se deixa de aplicar algo que estava previsto.

Para Fernandes, isso é discutível: “Os fatores que vão influenciar um maior ou menor gasto em educação e saúde manterão seu efeito com ou sem o orçamento impositivo”.

Alejandra Meraz Velasco, coordenadora-geral da ONG Todos Pela Educação, diz que qualquer medida que permita reduzir os gastos da área representa um retrocesso.

Principalmente porque, segundo ela, o Brasil ainda precisa vencer desafios que já foram ultrapassados na maioria dos outros países da América Latina, como a inclusão, explica ela: “Há 2,5 milhões de jovens em idade de frequentar o ensino médio que não estão frequentando. Mesmo no ensino fundamental, tem meio milhão fora da escola”.

Velasco cita ainda os gargalos de infraestrutura escolar. “E não é nenhuma extravagância: estamos falando de água potável, esgoto sanitário, de condições quase mínimas de funcionamento.”

Presente no texto inicial do Senado, a área acabou poupada na versão aprovada em primeiro turno: emendas determinaram o cumprimento do gasto mínimo obrigatório constitucional com manutenção e desenvolvimento de ensino. Mas a saúde foi mantida.

Tramitação

Uma PEC precisa ser aprovada em dois turnos por ambas as Casas para que seja promulgada. Na primeira votação dos senadores, a proposta que estende aos governos locais a liberação de 25% dos recursos atrelados a saúde e a educação foi avalizada por 53 votos a 17 (eram necessários 49, ou três quintos do total).

Em um Senado ocupado com o impeachment, o segundo turno acabou adiado diversas vezes nas últimas semanas. Com o afastamento de Dilma, a previsão é de que o texto finalmente seja votado nos próximos dias, e, caso os senadores mantenham seus votos, siga para a Câmara.

Em conversa com a BBC Brasil antes de ser nomeado ministro do Desenvolvimento Social e Agrário, o médico Osmar Terra (PMDB-RS), então líder da Frente Parlamentar da Saúde da Câmara, afirmou duvidar que os deputados acompanhem os senadores.

“Não se aprova na Câmara nem com banda de música isso aí”, disse o então parlamentar. “A maioria dos deputados tem a minha opinião. Eles não vão ser coniventes com o fim do Sistema Único de Saúde.”

Para Terra, uma medida como essa não mudaria muita coisa para municípios, que já seriam obrigados a aplicar mais recursos do que a lei manda.

“Nos Estados é que pode permitir que os governadores invistam menos em saúde”, diz. “Aí você junta o governador investindo menos na saúde e o governo federal cortando R$ 20 bilhões como cortou neste ano. Isso é tampa do caixão do SUS”.

Viabilidade em dúvida

Uma carta aberta publicada por instituições ligadas ao setor estima em até R$ 80 bilhões o valor que o sistema público deve perder anualmente caso a proposta seja aprovada — e levada a cabo.

Dalirio Beber, o senador autor da PEC, foi procurado pela BBC Brasil, mas não respondeu aos pedidos de entrevista até a publicação deste texto. Em texto publicado em seu site, classifica a cifra divulgada pelas entidades como “falsa informação” e garante que não haverá redução dos recursos aplicados em saúde.

“Se os (…) 5.570 municípios do Brasil, resolvessem aplicar única e exclusivamente os 15% que a Constituição os obriga, nós teríamos um colapso gigantesco instalado”, diz.

Embora a vitória do texto não tenha sido difícil no primeiro turno, uma análise do placar expõe uma divisão dentro do próprio PMDB de Temer — e do Ponte Para o Futuro: três senadores do partido, Hélio José (DF), Roberto Requião (PR) e Simone Tebet (MS) votaram contra a proposta tucana.

O que, de certa forma, ilustra as dificuldades que o governo peemedebista enfrentaria se resolver ir em frente com a ideia da desvinculação total dos gastos com saúde e educação.

Com informações BBC.

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